Mix vale – 17/11/2021
No novo livro “Contra a Realidade” (ed. Papirus 7 Mares; 192 págs; R$ 44,90), a microbiologista e pesquisadora Natália Pasternak e o jornalista Carlos Orsi se empenham em uma de suas atividades favoritas: combater o negacionismo.
Para o conceito de negacionismo não ficar etéreo, ele chega rápido no livro: “é a atitude de negar, para si mesmo e para o mundo, fatos bem estabelecidos ou um consenso científico, na ausência de evidências contundentes”.
No cardápio estão desde negacionismos mais tradicionais, como aquele praticado pela indústria do tabaco até a segunda metade do século passado, até os mais recentes, como aquele que rejeita a influência humana nas mudanças climáticas.
Ao longo do caminho aparecem a negação ao holocausto (assassinato de milhões de judeus pelos nazistas), criacionismo (para quem acredita que o a Terra e o Universo foram criado por Deus quase exatamente como são hoje, numa interpretação mais literal da Bíblia, e geralmente em oposição à Teoria da Evolução), terraplanismo (o nome diz tudo), entre outros.
Desde 2018, quando foi fundado o Instituto Questão de Ciência (IQC), o passatempo do casal ganhou um status oficial. Pasternak preside a entidade, e Orsi dirige a Revista Questão de Ciência, publicação do IQC. A organização não governamental sem fins lucrativos promove e fomenta a adoção de políticas públicas baseadas em evidências científicas -clamor que tem sido especialmente repetido ao longo da pandemia de Covid-19.
Foi fatídico, avaliam os autores, que o convite para escrever o livro e o lançamento da obra tenham coincidido com um momento em que o negacionismo estava tão em evidência, com a negação, por exemplo, do poder de disseminação do Sars-Cov-2 (o novo coronavírus), da gravidade da infecção pelo vírus, da eficácia das vacinas e até mesmo da própria existência da pandemia.
“O livro seria escrito de qualquer jeito, estava nos nossos planos, mas não esperávamos que o timing fosse tão importante. A gente nunca teve um governo tão negacionista quanto esse”, diz Pasternak à Folha de S.Paulo.
“Se não fosse agora [o lançamento], seria um livro frio, como tantos outros, inclusive ótimos, que existem. O contexto faz o livro virar uma obra ‘quente’, no jargão jornalístico. É muito legal lançar uma obra que fala sobre a conjuntura atual, mas também é assustador”, afirma Orsi.
Expor os negacionismos e dissecar seus métodos, como fazem os autores no livro, é uma forma de combatê-los. Mas e quanto a quem os promove? Por que, afinal, existem pessoas negacionistas?
Hoje é fácil analisar a situação da indústria do tabaco, por exemplo. Mesmo com a pilha crescente de evidências de que a incidência de câncer de pulmão estava intimamente ligada ao consumo de tabaco, a indústria ainda fomentava a dúvida, financiando estudos parciais e promovendo lobby para influenciar governos e meios de comunicação a seu favor.
Claro, as fabricantes de cigarros, com isso, buscavam garantir a continuidade do negócio. E, com as mensagens (enganosas) de que o cigarro não era tão ruim assim ou com as implacáveis (e desonestas) críticas aos estudos que evidenciavam os efeitos deletérios do fumo, quem fumava podia manter o mesmíssimo comportamento -e de consciência tranquila.
Nem sempre há um interesse econômico por trás de um negacionismo, mas o negacionista, sim, comumente está tão “investido” naquelas mensagens ou narrativas que passa a se tornar um ônus mental e social se desvencilhar daquilo, explica Orsi.
O custo de ficar sem o acolhimento de um grupo pode ser determinante para que esses comportamentos até mesmo sobrepujem a quantidade, a qualidade e a disponibilidade de boas informações.
Ainda assim, defende Pasternak, é fundamental informar de uma forma acessível. “Nosso papel não é convencer. A gente quer que a informação científica circule numa linguagem adequada e numa forma que as pessoas entendam. Se alguém procurar no Google por vacinas, essa pessoa não pode só cair em páginas antivaxxer [antivacina]”
Mas nem mesmo estatísticas como as 4 milhões de mortes evitadas todos os anos por conta dos imunizantes convencem algumas pessoas -os números, alegam, poderiam ter sido inventados e espalhados num complô global entre indústrias, governos e órgãos de imprensa. Tudo em prol de algum interesse econômico escuso.
E esse tipo de comportamento negacionista é comum em pessoas de classes mais altas. O alto nível educacional acaba servindo apenas para achar desculpas, desmerecer o conhecimento científico e se convencer, com base num argumento qualquer, que é preciso fugir das injeções e fazer o mesmo com seus filhos.
Para mudar o panorama, a saída é melhorar a comunicação de ciência, especialmente sobre as incertezas –muitas vezes, as informações são transmitidas com ares de que são definitivas, imutáveis, o que vai contra o próprio modus operandi da ciência, de autoaperfeiçoamento.
“Nem a OMS estava preparada para comunicar incertezas no começo da pandemia. A mudança de orientações gerou pânico, desconfiança e afetou a credibilidade das instituições. E movimentos negacionistas se alimentam desse medo; e são repletos de certezas absolutas –essa é uma diferença marcante. Se não comunicarmos com honestidade e transparência as incertezas, esses movimentos só vão crescer”, diz Pasternak.
O melhor que dá para fazer num momento difícil como o atual, argumenta Orsi, é extrair o máximo do conjunto de dados e informações disponível a cada instante. “A cada segundo, a gente tem que presumir o que é correto com base nessas evidências e tomar as atitudes mais responsáveis possíveis.”
Isso seria justamente deixar de negar a realidade e abraçá-la em toda a sua complexidade.